Don L contextualiza trechos polêmicos sobre Emicida, Criolo e Rapadura
O rapper Don L, autor de uma das mais belas obras de arte do ano,…
O rapper Don L, autor de uma das mais belas obras de arte do ano, o álbum “Roteiro Pra Aïnouz vol.3“, resolveu contextualizar versos de algumas músicas que causaram uma certa polêmica na cena.
Para quem não está ciente, nas músicas “Eu Não te Amo” e “Fazia Sentido“, Don L dispara versos como:
“Antes da Lavigne pensar em gadulizar uns MCs, (…)
E eu deixei o nordeste
Há dois ano com uma sede de secar a Sabesp
Sem chapéu de palha, nada clichê e velho
Eu vim pra tomar o jogo
Não pra ser um boneco exótico
E forjar um sotaque meio robótico
Com um papo Buda zen
Pra sugar bem
Pagar cinquenta ao bamba rei do samba
Se é MPBoy a grana vem”
Esse versos entre outros foram interpretados como uma série de ataques a rappers como Emicida, Criolo e Rapadura, portanto, para evitar mais desencontro de informação Don L resolveu botar tudo em pratos limpos, não apenas isso, mas também falou sobre rimas que atacam diretamente personalidades da MPB como Rick Bonadio e Paula Lavigne.
Na mensagem postada em seu perfil, Don L, esclarece ponto a ponto e ainda traz uma boa luz sobre o que há de podre no mainstream.
Deixamos abaixo o texto na íntegra, recomendamos que acessem também as letras de “Eu Não te amo” e “Fazia Sentido” no Genius para que possam compreender ainda melhor.
Por Don L em seu perfil:
Um bagulho que eu gosto muito de fazer no rap, e que sempre fiz é contextualizar, ser específico, citar nomes, lugares, trazer você pro meu mundo. Faço isso desde o Costa a Costa, que já tinha uma linha que dizia “ quando GOG curtiu minha rima / Gato Preto rolou no colombo “Vida Vadia” / e eu era mais um nordestino no sul mostrando a rima / na sala do dono da Sky Blue”… Sky Blue era a maior gravadora que lançava grupos de rap na época. Dez anos depois aqui estou e o cenário é totalmente outro, e em Roteiro Pra Ainouz vol.3 eu contextualizo de novo, porque tô contando uma história, e cito alguns nomes. Algumas coisas que tem ali, principalmente nas duas primeiras tracks, são muito de bastidores, e decidi fazer umas anotações verificadas pro Genius, mas organizei aqui de outra forma, que compartilho agora com vocês, e em breve por lá. Não dá pra falar tudo e cada detalhe, mas pra ajudar quem se interessa a visualizar melhor o Roteiro e entender exatamente o que eu tô querendo dizer em cada linha, segue aqui o esclarecimento das dúvidas mais frequentes. Vem comigo.
Emicida:
Em primeiro lugar, que fique bem claro: o Emicida é um dos caras mais importantes da cultura brasileira neste momento e tem sido nos últimos anos. Eu vejo o Emicida como uma continuação do legado Mano Brown, é o cara que continua o trabalho do Brown em um nível (econômico) acima, no sentido de inserção do negro na elite brasileira, com a visão de autoestima e posicionamento do rap, como artista e homem de negócios. É com esse papel importante que ele se insere dentro do baronato da música brasileira, da crítica musical brasileira, e joga o melhor jogo dele dentro disso. Sou totalmente apoiador e até mesmo entusiasta disso tudo.
Eu venho no primeiro verso falando sobre os caminhos pro sucesso no rap, e o que digo no começo do verso, “o mocinho é o boy ou o policial / o bandido é herói quando morre ou é virtual”, “todo mundo é Escobar agora ou um Tony” etc, são linhas que falam de outro lado do que tá virando no rap, que enquadra dezenas de rappers. Mas todo mundo se preocupa com o rapper que cito de forma explícita. Normal. Esse é um dos motivos pelos quais eu geralmente (geralmente) só cito o nome ou faço referência mais direta a quem eu tenho algum respeito.
Quando falo sobre o caminho de fazer MPB pra ser aceito, isso tem a ver inclusive com o racismo na música brasileira. Porque rap é música de preto, como é o samba. Eu posso estar errado, mas o termo MPB me parece ter nascido como uma apropriação do samba pelo “ser brasileiro” que nunca existiu. O Emicida passa a ser totalmente aceito dentro da elite da música brasileira dos grandes cartolas (Lavigne e cia.) quando começa a incorporar mais do que seria MPB na sua música, como em “Passarinhos” (parceria com Vanessa da Mata), que por esse motivo eu cito no verso de uma forma irônica. Não pelo fato de ele ter feito a música, que considero boa, nem pelo fato de ser música pop, até porque eu curto muita música pop, mas pelo fato de, pra uma certa elite da música, o rap ser considerado boa música apenas a partir de momentos como esse, quando ele supostamente deixa de ser rap (apesar de obviamente não deixar de ser rap). Tipo “olha, ele além de fazer rap sabe fazer música também”… O tempo todo nesse verso tô me imaginando em diferentes caminhos, e tentando mostrar, entre muitas coisas, inclusive algumas que não posso descrever racionalmente, como é superficial esse jogo e a visão das pessoas sobre as minhas próprias possibilidades.
“Pra chupar a Lavigne mais do que o Athaíde faz plano / na sauna Hype do Caetano.” Nessa metáfora que só quem é do backstage da música brasileira pode entender 100%, falo da relação da grande indústria com os artistas, principalmente os que vem do gueto, de sedução pelo superficial, pelo deslumbramento. E isso já não tem nada a ver com o Emicida.
Criolo:
Outro cara por quem tenho extremo respeito. Quando citei ali o caminho Criolo, é porque ele inventou esse caminho – e de forma autêntica, sendo ele mesmo, porque ele já tinha esse lado do samba nele. O Criolo quase sucumbiu em meio a inúmeras dificuldades até ter a oportunidade de trampar com o Ganjaman, que produziu fodamente o Nó Na Orelha, um dos melhores discos que conheço. Mas isso não quer dizer que eu deva seguir pelo mesmo caminho e colar “com um papo buda-zen / pra sugar bem / Pagar 50 ao bamba rei / do samba / ein ? / se é MPBoy a grana vem”. Repare que rimo isso tudo com Ganjaman, e a possibilidade dessa rima faz ela presente, sem estar. O bamba rei do nosso samba moderno. É irônico, mas é respeitando também o grande producer. Então nesse lance dos caminhos, entre a MPB e o samba como carimbo de aprovação como música, tem essa coisa da busca eterna da brasilidade no rap. A ilusão de que se eu colocar um pandeiro ou um sample de samba no meu rap vou ser mais brasileiro e minha música vai ser mais autêntica. Quando na verdade o Criolo, por exemplo, já é autêntico e muito brasileiro quando ele faz pura e simplesmente rap, num beat de rap do Ganja. Mas essa ilusão e busca eterna da sonhada ultrabrasilidade dentro do rap nunca termina. Talvez por ser um estilo de música de origem estrangeira, mas as pessoas esquecem que o rap é estrangeiro também no lugar de onde ele veio.
Rapadura:
Ainda ali falando sobre a visão superficial das pessoas sobre as minhas possibilidades, cito um estereótipo de nordestino, que as pessoas no rap associam com o Rapadura. Não é só sobre ele, mas sobre essa ideia. Várias vezes ouvi pessoas (sempre do Sudeste) sugerirem que eu caricaturasse minha imagem usando algum signo do que é ser nordestino, o que enxergo como uma embalagem de marketing, que não condiz com o que acredito. Então tô dizendo ali que esse definitivamente não é meu caminho. Eu sempre tive a preocupação de construir uma carreira que não me prendesse a idéias superficiais, porque a minha busca é pela liberdade.
Dito isso, acho que usar um chapéu de palha pode ser legal, pode ser bonito, pode ser seu estilo e isso pode ser massa. Usar isso como afirmação do povo do campo pode ser massa também, principalmente se você vem do campo e fala com essas pessoas, e tem essa base de fãs de pessoas que vivem isso, que sentem sua música e se identificam, e levam pra vida delas. O rap é música que tem certificado de origem. Como disse ali, é estrangeiro no lugar de onde ele veio, mas tem CEP. A gente fala nome de rua desconhecida no rap, nome de parceiros que a gente teve, nome de bandido que virou lenda na quebrada. O rap é específico e fiel à origem, por isso emociona, por isso bate no coração.
O rap do Diomedes por exemplo, leva você pras ruas de Paulista, uma cidade de Pernambuco que eu mesmo, que sou cearense e colei várias vezes em Recife, só sei que existe por causa dele. E ele vai ser específico sobre o lugar de onde ele veio, Jardim Paulista, vai falar sobre a juventude de lá que usa boné do NY e mata por um tênis Nike, e isso pode ser comum em guetos do mundo todo, mas o que emociona é a particularidade dele, a autenticidade dele. Você vai encontrar a mesma coisa na mixtape do Costa a Costa, de dez anos antes, que é de onde eu venho, onde comecei. A gente fazia os sons e ia botar pra tocar alto num Opala numa esquina do morro entre a favela do Marrocos e o Conjunto São Pedro. Rua Lima Barreto, meu endereço. Porque ser tão específico, né? A gente tava falando sobre a vida ali naquele lugar, e acreditava que a gente tinha que começar a fazer sucesso naquelas ruas em primeiro lugar. Em RPA3, eu tô falando sobre meu CEP atual, como um nordestino em êxodo no centro de São Paulo, sendo específico com o que eu tô vivendo, e com o que eu vivi, dentro desse novo contexto. Eu curto música que tem certificado de origem. Mas ao mesmo tempo quero ter toda liberdade pra ser o que eu quiser. Pra usar um pandeiro no meu rap se quiser. Pra usar um instrumento chinês se quiser, sem deixar de ser o que eu sou, que é substância e não superfície. Por isso eu amo o hip-hop, porque ele te dá essa oportunidade.
Caetano Veloso:
Um dos meus maiores ídolos. Me emociono com as músicas dele desde criança. Um cara que se mantém sempre relevante, impressionantemente.
Paula Lavigne:
“Antes da Lavigne pensar em gadulizar uns emcees.” Essa é bem de backstage mesmo. E eu não tô dizendo que o Emicida ou o Criolo foram gadulizados pela Lavigne. Mas sabemos que ela tem essa visão e tenta isso há algum tempo, inclusive com outros artistas que ela acabou não conseguindo trabalhar. Com uma artista em especial eu soube que ela queria fazer “a nova Maria Gadu”, frase que teria sido dita por ela mesma, daí a ideia dessa linha.
Bandinhas de Reggae:
Pouca gente entende quando digo que agora qualquer bandinha de reggae é o rap. E aqui de novo tem uma rima que enquadra dezenas de grupos de rap. Eu faço essa brincadeira temporal com uma teoria que tenho sobre isso. Hoje em dia, aquela molecadinha que dez anos atrás faria uma bandinha de reggae tipo Armandinho, hoje forma um grupo de rap. Aquela molecadinha que dez anos atrás faria um grupo de hardcore, ou de pop-rock, ou de qualquer caricatura de estilo estrangeiro que eles veriam na MTV e hoje veem pelo Youtube, hoje em dia forma um grupo de rap. E tudo bem, nem acho negativo isso existir e ter algum sucesso. Mas cada qual no seu lugar e com sua relevância. E claro que eu vou tirar uma onda com isso na letra, né?
Rincon:
“Antes do Rincon ter um hit / e receber uma geladeira Rick” O que eu tô dizendo aí é que o Rincon já é o Rincon há muito tempo e vem sendo um artista foda desde sempre, mesmo tendo sofrido com a visão tosca do Rick Bonadio sobre rap, na época em que ficou na geladeira da gravadora desse produtor medíocre. E o que tô dizendo no verso é que mesmo antes do Rincon lançar “Elegância”, primeiro hit dele, eu já tava influenciando os rappers de São Paulo, quem tiver dúvida pode perguntar pra ele. Inclusive posso ter influenciado negativamente também, porque na época nós éramos os caras que puxavam essa ideia de quebrar tabus no rap, e quando ele assinou com o Bonadio lembro até de parabenizar ele pelo MSN e dizer que acreditava muito nesse caminho, que achava foda que isso rolou com ele e que ele ia arrebentar dentro dessa estrutura.
ProEmiShid, Um Só Caminho, MC Marechal:
“Antes dos ‘proemishid’ ouvirem a minha mix e sacarem um outro caminho” Proemishid foi uma forma de fazer os Três Temores soarem bem nessa rima. Quando eu entreguei a mixtape do Costa a Costa na mão do Emicida em Campina Grande, na Paraíba, num evento de rap, ele fazia dupla com o Marechal no freestyle, e assim como ele, Projota e Rashid eram seguidores do caminho do Marechal (Um Só Caminho). Depois de um tempo e de a gente ter vendido 10 mil cópias da mixtape Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa, esses artistas começaram a lançar mixtapes e se colocar no mercado com uma postura mais parecida com o que a gente vinha propondo, do que com o caminho que eles vinham seguindo com o Marecha. Mesmo assim a primeira mixtape do Emicida foi feita dentro da estrutura do Marechal. O que eu tô querendo dizer com isso não é nada sobre quem é mais real ou quem é o mais foda. Tô só contando uma história e falando de uns fatos de backstage. Aprendi muitas coisas com o Marechal numa única conversa que tive com ele um dia, imagina esses caras que estiveram com ele por muito tempo. Quando o Emicida gravou um dos seus primeiros sons, eu mandei uma mensagem pelo Myspace parabenizando, e ele me respondeu agradecendo pela mixtape, que aquela introdução tinha trazido força pra ele e inspirado ele a continuar com o que seria depois a primeira mixtape dele. Eu lembrei disso tudo quando escrevi esse verso. Tô só contando uma história real aqui, falando de contexto, falando de onde eu vim.